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As Minhas Praias Desertas

As Minhas Praias Desertas

Mais um conto curto

    Carminho, inspiração do editor deste caderno de cinema para rascunhar algumas palavras para além da arte cinematográfica, afirma ter ficado chateada por revelar os motivos pelos quais criou a canção Praias Desertas, afirmando que considera que a música que ela compõe e canta, não deve ser interpretada por ela, mas sim por quem a ouve.

    Bom, e como ela mesmo explicou numa entrevista que deu (e que depois se arrependeu), a ideia da música Praias Desertas é o de ser uma canção que expressa uma forma com que as pessoas poderão se lembrar dela quando ela partir, quando ela morrer, e que se alguém sentir a falta dela, poderá achá-la na imagem de uma praia deserta. 

    Enfim, este novo conto curto tem haver com isso. Ou melhor, tem a intenção de ter alguma ligação com esta ideia de perenidade, de poder ser lembrado por algo, ou através de algo. 


    Ouça a canção primeiro, de depois leia o conto curto.

Carminho: "Praias Desertas"

        Cetro era um homem interessante. Ao entrar em sua casa, ou melhor, antes mesmo de adentrar em sua moradia era perceptível que ele gostava muito de flores e plantas, e além de bonitas e bem cuidadas, elas pareciam formar um quadro, uma composição. Não pareciam estar simplesmente e aleatoriamente posicionadas onde estavam, e se alguém percebesse tal arrumação e comentasse com Cetro sobre esta disposição, ele afirmava que não, que tudo estava ali sem um planejamento prévio. Era estranho, mas parecia sincero e verdadeiro quando ele negava. Era estranho e belo.


Além do seu óbvio bom gosto para as coisas da natureza, e isso pouca gente sabia, pois não era fácil de ser perceptível, ele também era culto. Um culto chucro, formado pela vida, mas sim, um culto. Gostava muito de literatura, e o que mais gostava na arte de ler era encontrar obras de desconhecidos, de autores não famosos e que estavam fora da grande mídia e do grande negócio que a literatura se tornara. Ele era o que se podia chamar de um rato de bibliotecas e sebos. Adorava isso. Mas não somente isso.


Tinha um ouvido super sensível para músicas, letras complexas, melodias diferentes. A tecnologia o ajudou a descobrir poetas, músicos, compositores e canções do mundo inteiro, e por este motivo era um experiente navegador de todo tipo de aparato tecnológico que o aproximava de canções do mundo todo. Ele tinha muito conhecimento da sua língua nativa, e não era capaz de entender as letras das canções estrangeiras que ele ouvia, mas certamente ele as sentia. Era isso. A chave para entender o quanto Cetro era culto era entender que ele não era um intelectual das artes, mas sim, uma pessoa que sentia. 


E tem mais. Ele explorava o mundo do cinema e o de produções cinematográficas do globo todo; era um apreciador de gravuras e pinturas; adorava teatro e peças experimentais; afirmava não gostar de arquitetura, mas entendia que muito para além da matemática necessária para se colocar uma obra arquitetônica em pé, havia muita necessidade de inspiração artística. Enfim, Cetro era culto, e parecia que toda essa sensibilidade era nativa, era intrínseca aquele homem simples, e se de alguma forma alguém ousasse defini-lo, poderia dizer que era um homem que sentia as coisas.


A forma simples e natural com que Cetro percebia o mundo o tornou um experiente profissional da floricultura. Ele era um jardineiro. Inclusive, um empregado contratado para trabalhar na casa de Grudrêncrio.


O Patrão, alcunha de Grudrêncrio para Cetro, e aqui o nome Patrão vai ser mais facilmente empregado que o trava línguas do nome oficial do chefe do culto jardineiro, era um homem austero. Rígido para os desconhecidos, mas afável e carinhoso para os seus. Dedicava-se tanto ao trabalho e ao sustento de sua família que contraditoriamente os colocava num aparentemente plano secundário. Dificilmente estava presente nos momentos memoráveis de sua esposa, de seus filhos, de seus pais. Contudo, quando presente, quando lá, era um homem completo. 


Um pai atencioso e cuidadoso. Um marido quente, amoroso e solícito. Um filho que toda mãe sonhara. O Patrão era um homem de poucas, mas precisas palavras. Um profissional do mercado financeiro que era cobiçado por muitos, mas o seu discernimento era sempre preciso, e sempre estava onde deveria estar, e de forma completa. Grudrêncrio, o Patrão, era um homem completo.


Um dia, ou melhor, numa noite, o Patrão que ainda estava no vigésimo terceiro andar do prédio onde trabalhava recebe uma ligação telefônica daquele que aparentemente era o seu patrão, e depois de muita conversa e descompensação, era notório que o Patrão havia falhado. Sua agonia não era por ter cometido um erro que resultou num grande prejuízo, mas sim pelo fato deste erro ter sido cometido pela negligência de um conhecimento básico da área de atuação do Patrão. Um erro que contradizia o óbvio. Ainda, o que mais aterrorizava Grudrêncrio R. J. P. - era assim que ele era conhecido na empresa onde trabalhava - não era o erro, mas sim por ter sido uma falha básica. Ele errou ao decidir sobre um fundamento do mercado financeiro. 


Ao chegar em casa não pode sequer tomar banho, pois foi notificado que não havia água em sua moradia, e que mesmo após muita averiguação, não identificaram o motivo da falta. Era como se fosse a gota d’água. Mas não foi, pois apesar de tudo, ele amava aquela família, e julgou conseguir resolver o problema pela manhã. Ou melhor, considerou que o seu fiel empregado Cetro e todo o seu conhecimento sobre tudo seria capaz de resolver aquele que se tornara um mal cheiroso problema.


Batata! Logo pela manhã, no dia que sucedeu a folga de Cetro, e após fazer um ou dois buracos no belo gramado, ele encontrou e resolveu o problema. A água estava restabelecida e durante a noite o Patrão pôde dormir, digamos, um pouco mais tranquilo. Inclusive, a conhecida destreza de ambos foi capaz de minimizar as dores dos acontecimentos que haviam impactado a vida dos dois no dia anterior. Contudo, Cetro foi tratado como herói, mas o Patrão não fez nada a mais que sua obrigação. Assim foi como ambos perceberam o que havia ocorrido.


Cetro observou que uma raiz subterrânea havia estourado os canos que levavam a água para dentro da casa, mas o que causou espécie naquele homem experiente é que aquela raiz parecia ter sido formada abruptamente, e que não, ela era realmente um fundamento de árvore que ainda não existia. Ele procurou rastrear naquele quintal que conhecia como a palma da sua mão onde estaria a planta suportada por aquela raiz, mas não a achou. A natureza é muito maior do que o meu conhecimento, pensou. 


A vida seguiu o seu rumo. Os dias, semanas e meses transcorreram como que se normais, mas um exame médico corriqueiro do Patrão causou novamente um alvoroço naquela família. Um diagnóstico difícil de ser entendido foi explicado com sutileza pelo jardineiro: é como se as memórias voassem da cabeça do Patrão, explicou Cetro enquanto varria naquele verde quintal as amarelas flores que se espalharam em toda a extensão do grande terreno.


Tudo mudava. O Patrão cada vez mais esquecido começou a ficar mais em casa, e apesar de ser muito estranho a sua repetida presença, Cetro não conseguia entender a fonte daquelas cada vez mais intensas flores amarelas. Parecia que o empregado não estava tão sensível à situação do patrão, mas na verdade a dedicação dele ao quintal era uma forma ainda mais cuidadosa de se dedicar àquele homem que parecia definhar, e que o fazia ali, no quintal de ambos. 


Como esperado, um dia Grudrêncrio não resistiu, e sua doença o levou muitos anos depois dos seus primeiros sintomas. Todos sentiram. Todos sofreram.


Cetro, um bom homem que era, continuou trabalhando para aqueles que aprendera a amar, e numa tarde enquanto rastelava aquele belo e grande quintal deparou-se com o que consideraria a maior surpresa de sua vida: um frondoso Ipê, com um tronco rígido, alto e grosso, com muitos galhos e completamente florido com grandes cachopas de flores amarelas aparecera no quintal. Aquela árvore não estava lá antes. Aquela árvore… Aquela árvore.. Aquela… Árvore… 

Cetro, usando de toda a sua sensibilidade, olhou para aqueles galhos generosos, para aquele tronco imponente e para aquelas belas formações de buquês amarelos e venerou em pensamento o seu Patrão.

jacozao.com
Curitiba 2022

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