Sentas-te a meu lado!

O Silêncio

Um conto curto

    O dia de hoje será diferente neste caderno de cinema. A proposta é a seguinte: ouça com calma e cuidado a música da Carminho do vídeo a seguir, repetindo se precisar; depois, leia o conto que segue e ouça novamente a música. 

Carminho: "Sentas-te a meu lado"

Aquele dia começava silenciosamente, lembrando ser um dia de folga, um domingo, feriado, ou algo equivalente, mas Ele lembrou-se que não, não poderia ser um dia que não pudesse ir trabalhar. Seu corpo doía como se não tivesse dormido naquela noite, ou melhor, como se não tivesse dormido várias noites seguidas, e mesmo um pouco contrariado foi, foi trabalhar. 


O percurso que percorreu até o seu trabalho estava muito movimentado, com muitos carros e pessoas nas ruas, e ele percebeu que aquele silêncio que escutou pela manhã não tinha fonte no exterior, mas sim dentro dele. O sentimento era como se estivesse descido a serra do mar e o seu ouvido estava como que entupido, porém, ele ouvia tudo ao seu redor, e realmente não se tratava de barulhos externos, concluiu sem dúvidas e se acalmou um pouco. 


O dia seguia, a rotina o engolia, e curiosamente percebeu que chegando perto da metade daquela segunda-feira ele havia trabalhado muito e não se sentia cansado. Com fome, talvez. Na cafeteria onde costumava almoçar teve companhia de colegas e amigos, e apesar de rir um pouco e conversar até bastante, aquele silêncio começou a incomodá-lo novamente. Durante a tarde precisou caminhar um pouco, e como chuviscava, sua roupa ficou um pouco molhada, e ao chegar novamente ao escritório seu cabelo também estava ensopado, e percebeu um sabor salgado da água que escorria em seu rosto. Não era suor, eram lágrimas. 


Seu repertório de ilusões cotidianas havia se esgotado, e agora sem as distrações corriqueiras dos seus afazeres, o retorno para casa começava. Uma vez mais percebia aumentar gradativamente o alto som daquele silêncio, que agora ele a chamava de sorrateira silenciosa. A companhia dela, da Sorrateira Silenciosa, não o distraia, e ao seu modo ela o incomodava mais agora de tarde do que de manhã. Percebeu que dificilmente se livraria dela. 


Em casa, uma vez mais, conseguiu se distrair um pouco, banho, roupa, aquela torneira pingando, a cama desarrumada. Jantou uma xícara de café e um pão murcho, e como gostava daquela combinação, aquilo não fez com ele se sentisse pior do que já estava. Sua nova companhia não o abandonava, e tudo, mesmo o que gostava minimamente, estava sem graça. Não havia fonte de ânimo.  


Sentou-se, e ao lado dele percebia que ela também se sentava. Quis saber um pouco sobre ela, e concluiu que aquilo era muito estranho: “eu a ouço, eu consigo ouvir o sussurrar estridente do que ela não está me dizendo com todo este calar, mas mesmo assim sinto ela aqui, como se não calasse, como se não estivesse silenciada. Estranho.” Ele não conseguia explicar o que sentia, o que não ouvia, mas parece que ela pedia socorro, parece que ela tinha algo para falar. Parece que ele pedia socorro, parece que ele tinha algo para falar.  


Silêncio absoluto. Confusão absoluta. Certamente não conseguiria dormir.  


Naquela noite fez algo que tinha se acostumado a fazer nos últimos 6 meses. Um ritual que certamente não o ajudava e nem o ajudaria a dormir, justificando a dor que sentiria em seu corpo no amanhecer do outro dia, que se repetia dia sim, dia sim.  


Apertou o botão do rádio que ficava na cabeceira da sua cama e ouviu a mensagem que Ela havia gravado para Ele alguns dias antes de descobrir sua doença, que a levou 6 meses atrás. Lembrou-se do beijo e adormeceu com o desejo que Ela viesse, e pudesse ficar. 


jacozao.com
Curitiba 2023

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