Filme (5.0): "O Quarto de Jack", Canadá, Irlanda, 2016 [2016]



Lançamento 2016 
Dirigido por Lenny Abrahamson
Com Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen
Gênero Drama, Suspense
Nacionalidade Canadá, Irlanda       

    Era asqueroso ao toque, mas a noite não permitia repelir o contato e apesar do grande temor em relação ao desconhecido que parecia mexer-se, os dedos deslizavam sobre aquilo que não seria maior que o dedo menor, o senhor mindinho.

   De manhã, quando ainda o ar está muito frio devido ao resfriamento da madrugada, o despertar foi prontamente de sobressalto ao lembrar-se daquele contato noturno sem explicação e pior, sem um caminho a seguir, visto que não havia indícios daquele desconhecido. Um cheiro quente atravessava a cortina florida que dividia a cozinha do quarto: parecia pinhão. E era.

   Engraçado como as coisas eram, ou pelo menos pareciam ser, pois todo amanhecer renovava tudo. Tudo mesmo: o que aconteceria no Cantinho da Alegria naquela tarde? Será que alguma fuga do presídio pelos esgotos animaria os vizinhos naquele dia? Na rua, é dia de vôlei? Bom, as perguntas iam-se respondendo no decorrer do dia, apesar de que pela tenra idade do piá, os arquivamentos das respostas eram muito menos importantes que a concepção de novas questões, e outras, mais outras e muitas outras demais. 

   Junto da noite chegava também a chuva, que naquela cidade era tão comum como o próprio anoitecer, mas diferentemente dele não tinha hora marcada e acontecia de dia - e também de noite - surpreendendo apenas os estrangeiros que batiam os queixos e queixavam-se da friagem e da umidade. Era sempre assim. Sempre mesmo.

   As novidades do dia eram momentaneamente esquecidas, abrindo espaço para o que viria da noite e principalmente do novo dia. Na verdade eram inconscientemente comprimidas e guardadas, formando aquilo que seria o caráter do ainda muito louro menino, que muito cansado voltava para a cama, na proteção superior do pequeno telhado de telhas de barro, do abraço da mãe que também cansada teria naquele momento o seu melhor momento do dia. Crê-se que para ambos.

   Escuro feito, parece que uma grande luminosidade clareava os sentidos e a lembrança do desconhecido visitante não deixava o pequeno sequer fechar os olhos, mas, apesar de ativado o sentido da visão, o do tato era contido, mas por muito pouco tempo. É, a curiosidade dos pequenos não é proporcional ao tamanho que têm, e os dedinhos da mão esquerda, do mesmo lado que dormia, sentiam o áspero da madeira, das ripas que fechavam os vãos entre as tábuas. Mas naquela noite outro sentido atrapalhou a investigação noturna, e os pequenos ouvidos que outrora já estiveram entupidos com feijão ouviam um tic-tac desconhecido. Em casa não havia relógio!

   De manhã um delicioso cheiro de pêssegos e maçãs contaminavam a casa de dois cômodos, mas a fonte da real alegria estava no sofá que ficava entre o quarto e a cozinha, pois o tio distante estava em casa. Entre as frutas que ele trazia, no meio de um abraço caloroso o piá escutava no peito daquele homem o som que lhe tirara a atenção na noite: um relógio, um tic-tac no peito do tio? 

   Pois bem, aquilo, o tic-tac, salvaria a vida daquele irmão da mãe do pequeno, e permitiria que ele vivesse ainda por mais de trinta anos e que no fim deste prazo protagonizaria a frase mais triste que o menino ouviria na vida... Mas esta é outra história. O dia novo começava, mas aquela noite que ainda estava tão longe seria reveladora.

   Pinhão, pêssego, macarrão e o cheiro de suco de laranja na lancheira eram lembranças novas que acompanhavam-no na cama quente. Era magrinho, mas gostava de comer. O tio já tinha ido embora, mas a perspectiva de encontrá-lo em breve em sua cidade de moradia gerava uma alegria incabível... Esta, no sentido de não servir, de não ter espaço. Mas naquela noite, iluminada pela lâmpada amarela do quarto, a revelação ocorreria. E não tardaria.

   Mais uma vez a mãozinha esquerda deslizava na parede, acompanhada naquela noite da direita, gerando movimentos que descobririam ele e sua protetora master do cobertor que os aquecia, e isto foi fatal para a penumbra noturna: a mãe acende a luz, reclamando da inquietude daquele que parecia ter o bicho carpinteiro. Pois bem, a brabeza da mãe e a luz amarela revelariam num quase grito o pequeno ser gosmento que noites atrás fora identificado somente pelo toque do menino:

   -TIRA A MÃO DAÍ! Vou pegar sal para matar esta lesma.

   Anos depois o pequenino descobriu que a umidade daquela cidade era uma das principais causas do surgimento daquele bichinho realmente nojento. 


   O bicho foi, o tio foi, a casa foi, a mãe ficou, o menino ficou, o piá ficou. Ainda bem!


Fonte: "A Vida do Menino", 1980 até hoje.


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   O cinema torna-se realmente relevante quando transforma algo nas pessoas e, a história do "Quarto de Jack" fez isso, pelo menos numa pessoa.

  As lembranças relatadas neste conto foram desentocadas do fundo da memória do já não tão piá, que ao assistir este fabuloso filme não conseguiu reprimir a memória e a identificação com  vida do pequeno Jack. 

   Espero que ganhe o Oscar deste ano. Espero. 




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